Ao analisar, na ADPF 46, a já descrita questão da não recepção, pela Constituição, da lei 6538/1978 (“monopólio dos correios”), o STF debateu, também, sobre o crime de violação do privilégio postal da União. Dessa assentada, destaca-se o trecho abaixo reproduzido em vídeo, em que apontou o Ministro Gilmar Mendes a inconstitucionalidade de tipos penais abertos - dentre os quais aqueles de cujas redações constem locuções como “em desacordo com disposição legal”, “sem observância das condições legais” e assemelhadas - por violação ao princípio da taxativade. Foi mencionado, expressamente, o delito previsto no art. 178 do CPC (emissão irregular de conhecimento de depósito ou “Warrant”). Eis as redações das normas analisadas:
E o trecho do vídeo da sessão em que foi versado o tema:
Transcreve-se do vídeo:
“Extrai-se, a meu ver, do tipo penal em análise, que o delito se caracterizará quando, ao coletar, transportar, transmitir ou distribuir objetos de qualquer natureza sujeitos ao monopólio da União, o agente não estiver no exercício regular de uma das ações que a própria lei autoriza.
A caracterização do delito se dá mediante a técnica da exclusão: se a conduta não estiver permitida, então é delituosa. É que apenas a combinação desses dispositivos permite saber se houve conduta delituosa. Em outras palavras, para se ter como certa a caracterização do delito, é necessário primeiro saber se a conduta do agente não estava autorizada por alguma das hipóteses legais.
Semelhante técnica é adotada em outras normas incriminadoras, como por exemplo na descrição do tipo penal do art. 178 do Código Penal, que incrimina o fato de emitir conhecimento de depósito ou warrant, em desacordo com disposição legal. O conteúdo incriminador não se apresenta preciso, por exigir a identificação daquilo que está em desacordo com a lei que regula os institutos do conhecimento de depósito e do warrant. Não bastasse essa especial circunstância do tipo penal, por si só reveladora de sua falta de precisão, para saber se a conduta está autorizada será também necessária uma interpretação quanto aos limites das hipóteses permissivas, antes de seu cotejo com as ações que motivaram a denúncia. O elemento normativo, aqui representado pela expressão “sem observância das condições legais”, causa considerável indeterminação do conteúdo do tipo penal, enfraquecendo sua função de garantia, taxatividade, pois a própria existência do fato punível reclama exegese quanto às lindes das hipóteses permissivas. ´
O princípio da legalidade, disposto no art. 5º, inc. XXXIX da Constituição e presente no art. 1º do Código Penal, para além de fixar a necessidade da existência de uma lei escrita anterior à ocorrência da conduta, apresenta desdobramentos dentre os quais se destaca a taxatividade, pela qual se reputa inconstitucional toda lei penal que de forma vaga e imprecisa afaste do destinatário o entendimento do seu alcance. Desse entendimento não discrepa a doutrina. Em tal sentido, observe-se a lição de Heleno Cláudio Fragoso, que ao tratar das variadas funções do princípio da reserva legal ensina:
“Finalmente, atinge o princípio da legalidade a incriminação vaga e indeterminada de certos fatos, deixando incerta a esfera da ilicitude e comprometendo, dessa forma, a segurança jurídica do cidadão.
É este um aspecto novo do velho princípio, que pode ser formalmente observado, com a existência de uma lei prévia, mas violado na substância, com a indeterminação da conduta delituosa. Como ensina o mestre SOLER, ‘ só existência de lei prévia não basta: esta lei deve reunir certos caracteres: deve ser concretamente definidora de uma ação, deve traçar uma figura cerrada em si mesma, por força da qual se conheça não somente qual é a conduta compreendida, senão também qual é a não compreendida’.
A incriminação vaga e indeterminada faz com que, em realidade, não haja lei definindo como delituosa certa conduta, pois entrega, em última análise, [a] identificação do fato punível ao arbítrio do julgador”.
O fim social ao qual se destina o princípio da legalidade, caracterizado como mais uma forma de garantia dos direitos individuais, efetivamente jamais será atingido se a lei penal não externar, de forma clara e taxativa, quais as condutas que, caso praticadas, levam ao ilícito penal. É o fenômeno da abertura excessiva do tipo penal, violando o princípio da legalidade.
Em relação ao crime de violação do Crime de Privilégio Postal da União, solucionou o Tribunal o problema da inconstitucionalidade outorgando-lhe interpretação conforme a Constituição. Quanto ao delito do art. 178, permanecem em aberto – porque estranhas ao objeto do julgamento - as questões de estabelecer se realmente ele viola a CF e, se afirmativa a resposta, qual a técnica para escoimar do vício o ordenamento jurídico positivo.
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